Uma nova antropologia

05/11/2020

A linguagem que usamos em nosso cotidiano pode indicar como compreendemos as nossas relações com tudo o que nos envolve: pessoas, natureza e a Transcendência. Tornou-se comum usar a expressão “a gente”, em vez de “nós”. “A gente” é indefinido, sem nome e sem identidade, e, portanto, sem responsabilização pessoal. Quando dizemos “eu”, empenhamos nossa identidade, nos responsabilizamos por aquilo que está em questão. O tempo que vivemos, marcado por incertezas e expectativas, nos desafia a encontrar no “eu” e “tu” a singularidade de “nós”. “Nós” não é apenas pronome pessoal, mas uma pluralidade e, consequentemente, uma multiplicidade de tensões, conflitos, sonhos e oportunidades. ​Se até recentemente agíamos confiantes de que o progresso científico e o crescimento econômico eram caminho promissor para a superação das imensas contradições socioeconômicas da sociedade, agora estamos sendo recordados que fazemos parte de um todo, que tudo está interligado, que somos responsáveis uns pelos outros. ​Constata-se, sobretudo nos âmbitos econômico e social, um grande desarranjo. Para os que subestimaram o novo coronavírus, dirigindo-se a ele como um “simples vírus”, o preço foi ou está sendo alto. Nossa compreensão de pessoa como sujeito de direitos e deveres, das normas de convivência social, das regras de uso do tempo e espaços, da relação com a natureza, do cuidado para com a Casa Comum (a natureza) foi profundamente abalada, exigindo uma nova antropologia. ​A COVID-19 está impondo à existência humana uma análise mais profunda e radical. Esta não poderá desconsiderar a nossa fragilidade, a força da natureza e a importância das relações humanas nos seus três âmbitos: consigo mesmo, com o outro e a natureza, e com a Transcendência. ​Estamos sendo “chamados a rever os nossos esquemas mentais e morais, para que estejam mais em conformidade com os mandamentos de Deus e com as exigências do bem comum”. Por isso, o Papa Francisco, está empenhando aqueles que “começam a estudar e a pôr em prática uma economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a devasta”, para cooperar na construção de novos caminhos para uma sociedade onde a indiferença ceda seu lugar ao “nós” e, assim, cresça e se consolide a consciência de que somos todos irmãos.


Autor:
Por Dom Jaime Spengler, arcebispo metropolitano e primeiro vice-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

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